Na Índia, é muito perigoso para uma mulher andar de ônibus. É muito perigoso
para uma mulher, na Índia, andar, mesmo a pé. É perigosíssimo para uma mulher,
na Índia, ficar viúva. Na Índia, desaconselha-se vivamente a uma mulher ficar
idosa – e, aliás, faz-se o possível para que isso não aconteça. O melhor, para
uma mulher, na Índia, é não nascer mulher.
Agora mesmo, depois do escândalo da jovem estuprada por seis num ônibus e morta
a golpes de barra de ferro, uma outra passageira de ônibus foi estuprada por
sete durante toda uma noite, e uma terceira nem que sequer estava em um ônibus
foi sequestrada, estuprada, estrangulada e jogada numa vala – diz o pai dela
que foi trabalho da família o marido, marido incluído, ressentidos todos
porque o dote levado para o casamento havia sido modesto.
Na Índia, ainda agora em pleno desenvolvimento, se o dote de uma noiva é
considerado insuficiente, não se devolve o dote, se devolve a noiva, de preferência,
morta. Devem-se à indústria do dote cerca de 100 mil assassinatos de mulheres a
cada ano.
Se o dote for bom, há outros recursos. As agressões, a escravização doméstica,
as lutas de castas, as ofensas à honra, as disputas familiares, o infanticídio feminino
conseguem elevar essa estatística para 2 milhões anuais. E, se tudo falhar,
pode-se sempre mandar a fêmea da espécie dar uma volta de ônibus.
Suspeito que a antiga tradição de imolar a viúva na pira funerária do marido
seja menos uma imposição do que uma escolha, pois a viver nesse inferno, melhor
o fogo.
Na década de 60, quando éramos hippies e buscávamos a elevação espiritual,
ficou bem, além de procurar a iluminação em todas as drogas, gostar da Índia.
Tive vários amigos e amigas que lá passavam longas temporadas, regressando à
beira do êxtase. Sobre a questão das castas e da violência contra as mulheres
passavam levitando, era tudo parte do grande pacote místico que os encantava e
que não podia ser objeto de críticas.
Li recentemente um belíssimo livro sobre a Índia, escrito por quem entende
dela, a jovem indiana Arundhati Roy. O deus das pequenas coisas é
um romance, mas pode ser assimilado como um ensaio, porque tudo o que conta – a
não ser a trama – é verdadeiro, fruto de uma observação minuciosa somada a
vivências pessoais. Na história de três gerações de uma mesma família, as
mulheres tecem os fios mais importantes e sofrem, todas elas sofrem, a matriarca
apanhando do marido, uma tia vivendo em segredo a paixão por um missionário,
uma menina sofrendo a ausência da mãe, e a mãe entregando-se no escuro segredo
da noite a um homem da mais baixa casta, um intocável.
O livro de Arundhati pode ser lido como um ensaio não apenas porque se
passa em Kerala, onde ela própria nasceu e cresceu, mas porque, ativista nas
questões femininas e contra o sistema de castas, essa jovem mulher conhece bem o
universo de preconceitos de que fala.
A posição social das indianas tem melhorado muito nas últimas décadas, figuras
femininas se destacam em todas as áreas e multidões estão indo para as ruas clamando
por leis de proteção mais severas. Mas no país ainda preso às antigas estruturas
patriarcais, o avanço das mulheres é vivido pelos homens como uma ameaça e está
gerando violência ainda maior contra elas. (Primeiramente
publicado no ESTADO DE MINAS, Cultura, 17/01/2013, publicado neste Blog com a
autorização da Autora).